Ruralidade, paisagem, memória: o fluxo de projecções e debates do seminário de 2005 passa privilegiadamente por estes pólos ou tem neles especiais pontos de partida. Propomo-los como matéria(s) de cinema – e, nesse sentido, sugerimos que se traduzam também, desde o início, por temas como olhar, interlocução (confronto com a câmara), movimento, trabalho sobre o espaço, trabalho sobre o tempo. Pelo caminho, abrimos portas para outros pequenos-grandes mundos, que são outras tantas pistas para conversas futuras: a iniciação à imagem, a imagem de arquivo, o território do cinema no território da imagem. A terminar, antes do balanço final, propomos ainda um regresso a alguns daqueles primeiros temas por dentro do que foi algum do mais forte cinema português.
Notas de uma filmagem inacabada. É mais fácil documentar documentaristas ou correr atrás de uma ovelha? Fixar um olhar ou pregar olho? Aprendi com ovelhas a mastigar. É mais difícil procurar documentando ou falar encontrando o que se viu? Fugir é por um lado e atrás é pelo outro. Serpa ainda não é tão grande assim. Impossível, pois. Fugir atrás do olhar.
“Visitámos pequenas explorações agrícolas sem história. Camponeses – reformados, solteiros ou casais modestos – são muitas vezes esquecidos. Este filme é dedicado à aproximação, a estas mulheres e a estes habitantes. Vamos retroceder vários anos, para acompanhar a evolução destas explorações situadas a meio das encostas das montanhas. A maioria continua a trabalhar e a viver na sua própria quinta, muitas vezes até ao fim da vida. Jovens agricultores licenciados procuram quintas para explorar; são poucos, querem viver nestas montanhas.” – Raymond Depardon
Lozère, Ardèche e Haute-Loire são distritos franceses conhecidos sobretudo pela agricultura. No entanto, hoje em dia, as quintas das antigas famílias de camponeses estão a ser transformadas em luxuosas casas de campo enquanto a indústria agrícola se concentra em monopólios. Em Profils Paysans: Le Quotidien, o realizador presta homenagem aos camponeses que, numa época de rápidas mudanças, persistem num modo de vida que, de outra forma, já teria desaparecido.
Na imensa planície alentejana, sulcada por estradas novas e transtornada por grandes obras, homens e mulheres, antigos trabalhadores agrícolas, confidenciam quanto a vida deles mudou. Lembram-se das condições de miséria às quais eram sujeitados antes do 25 de Abril. O trabalho que faziam nos campos, do nascer ao pôr do sol, não chegava a alimentá-los. Só a fome, a poesia e o sol lhes pertenciam.
Conjunto de documentários filmado em 8mm e vídeo, ao longo de 35 anos, I Paisan é um registo único do desaparecimento de um mundo rural filmado por alguém que dele faz parte. Morandi, com uma abordagem longe do idealismo bucólico e do neo-realismo, presta homenagem aos camponeses.
Encontros pretende circunscrever a presença de uma tribo sonora, musical e poética, humana, uma tribo analógica e surpreendente cujo território não corresponde a nenhum território geograficamente conhecido. Embora Encontros pretenda constituir um díptico com Polifonias, não se trata de uma mera repetição nem de uma continuação deste no mesmo estilo. Ainda que os participantes sejam semelhantes, e semelhantes (mas nunca iguais) sejam as suas paisagens. O filme cruzará diferentes encontros, presentes ou passados, entre pessoas e memórias. Através desses encontros, desenhar-se-á uma interrogação sobre aquilo que nos constitui, e em que medida a memória, o olhar do outro e as partilhas nos enriquecem.
“Tinha 14 anos quando atravessei o Eufrates a bordo de um ferry, com o meu pai e o carro cheio de mobília. Deixávamos a minha aldeia para nos estabelecermos em Aleppo. Queria filmar o ferry, a minha região, as pessoas e as crianças que me faziam lembrar a minha infância. Queria filmar tudo o que me era querido, antes de ser engolido pela barragem.” – Mohamad Al Roumi
A construção da Barragem das Três Gargantas, a maior do mundo, estará terminada em 2009. Até lá, milhões de pessoas serão realojadas uma vez que centenas de cidades e vastas áreas de terra, bem como inúmeros monumentos e locais históricos, ficarão submersos. Entre estes, Fengjie, cidade natal de Li Bai, um dos mais importantes poetas chineses. Before the Flood documenta o realojamento de Fengjie, em 2002, antes da primeira etapa da subida das águas, e o processo que afectou a vida de muitas pessoas, causando-lhes preocupações e originando confrontos.
Como ensinar as crianças e adolescentes a ver um filme depois do advento da televisão, dos videos e dos jogos de computador? Como transmitir-lhes, não um saber, mas aquela intuição de que uma imagem de cinema é outra coisa, a eles que por uma prática quotidiana do visual são levados a já não se espantar com nenhuma imagem, nenhuma montagem, nenhuma realização?
Durante seis anos filmámos muitas imagens da velha Aldeia da Luz, condenada a desaparecer debaixo das águas da barragem do Alqueva. A partir dessas imagens e de redacções de crianças da Aldeia da Luz que recordam o que sentiram durante todo o processo, este documentário conta-nos em flashback a estranha história desta aldeia.
O mar é o lugar que encerra a memória do mundo. Das fendas do mar, reconstrói-se o conto de uma cidade perdida. Filme meditativo e poético que aborda, de uma forma experimental, o mar, a memória, as emoções.
Utilizando apenas filmagens de arquivo e sem recorrer a qualquer palavra, Natureza Morta procura redescobrir e penetrar a opacidade das imagens captadas durante os 48 anos da ditadura portuguesa (actualidades, reportagens de guerra, documentários de propaganda, fotografias de prisioneiros políticos, mas também filmagens nunca utilizadas em montagens finais), permitindo a sua reabertura a diferentes leituras.
“Fui à Bósnia quando a guerra acabou, em 1996, e estavam a ser implementados os acordos de Dayton. A Bósnia foi dividida em duas entidades, que separavam os dois principais opositores do conflito: Os Bósnios Sérvios e os Bósnios Mulçumanos. Dois anos depois, em 1998, voltei à Bósnia… O filme é o diário destas duas viagens, em que me confronto com as memórias da guerra, com a morte e com a destruição, e com a sobrevivência das vítimas que não sabem como voltar para casa.” – Joaquim Sapinho
Aldealseñor, Castilla, Espanha, uma aldeia de catorze habitantes, os últimos de uma geração com mil anos de história. Hoje, a vida continua, mas em breve desaparecerá sem deixar vestígios. Os habitantes e o pintor partilham algo: o mundo evapora-se diante dos seus olhos. A realizadora regressa à sua origem para testemunhar esse desaparecimento.
No escuro, o choro de um recém-nascido rompe o silêncio de uma noite quente de verão. Mãe e filho dormem, depois do alvoroço do parto. Inesperadamente, sem ninguém se aperceber, uma pequena mancha vermelha alastra na roupa do recém-nascido. Aldeões ocupados nas suas tarefas, crianças que brincam, e a natureza segue o seu curso irreversível. Só, sentado na sombra de um sótão, um rapaz desenha o mostrador de um relógio no seu pulso esquerdo. Ao acabar, leva o pulso ao ouvido, como se pudesse ouvir a batida do mundo à sua volta. Chronos, com o seu olho vigiador, procura controlar a vida, mas esta escapa-se. O sangue brota na roupa da criança como uma rosa. O rapaz do sótão apaga o relógio que desenhou. Uma libélula paira no ar – agora não, meu filho, não agora…! O eco da história impressa nas páginas de um velho jornal desvanece-se. À medida que a sombra cai de novo, vislumbra-se uma data – sexta-feira, 28 de Junho de 1940.
Um comboio avança até ao… Fim. Pelechian e a sua câmara captam os rostos dos passageiros do comboio Ereva-Moscovo. Algo que começa. Uma viagem que decorre. Algo que termina.
O olhar de Pelechian detém-se na figura de uma mulher numa sala de partos, no que é o seu primeiro filme a cor.
Five, um video em cinco partes, centra-se numa faixa da costa do mar Cáspio. Cada secção é filmada de um ponto de vista que capta o que se passa na praia: um pedaço de madeira à deriva, pessoas que passeiam, cães brincalhões, patos incomodativos, uma tempestade nocturna. Meditativo, persistente e em sintonia com o ritmo da natureza, Five desenrola-se languidamente, permitindo aos espectadores a liberdade de contemplar cada pormenor. Segundo Kiarostami, o seu cinema é comparável à poesia por exigir concentração e reflexão. A propósito de Five, Kiarostami afirmou: “É como se recitasse um poema que já foi escrito. Já tudo existe…Eu apenas observo”. Tendo como subtítulo – Cinco Longos Planos dedicados a Yasujiro Ozu, Five assume-se como um objecto exigente e transcendente de arte minimalista.
A partir daquilo que identificámos como cinema do pai e da paisagem, poético e avassalador de reinos (António Reis/Margarida Cordeiro) procurámos os dois outros pólos do triângulo no tratamento metafórico dos cenários naturais (Paulo Rocha) e na inclusão da personagem no cenário reconstruído d’après-nature (Pedro Costa). Constatámos um cinema do interior e da interioridade – por oposição à oficial gesta marítima e conquistadora – e detectámos uma recorrência da figura do rio (rio do sangue, do ouro, da fronteira), numa abordagem do real que tende a transformar a vastidão do horizonte em puro espaço fechado.
Piadena, 1937. Nascido numa família de camponeses, interessa-se muito cedo pela industrialização do mundo rural e pelos últimos traços da cultura camponesa. Tem um percurso de fotógrafo com várias exposições e publicações que retratam a sua terra natal. Em paralelo, realizou cerca de quinze documentários sobre o mesmo tema. Tem em preparação um novo filme intitulado La Bassa Padana.
Espanha, 1966. Completou o Master em Documentário na Universidade Pompeu Fabra (Barcelona). Realizou a curta El Viento Africano em 2001 e fez a montagem de En Construcción, realizado por José Luis Guerín.
Bangkok, 1963. M.A. em Media Studies da New School for Social Research, em Nova Iorque onde, nos anos 90, trabalhou em cinema. Em 2001, fundou Found Footage, um grupo independente de cinema. Escreve sobre cinema para várias publicações tailandesas.
Lisboa, 1962. Pós-graduação em Estética e Filosofia da Arte, Universidade de Lisboa. Licenciatura em Artes Plásticas/Pintura, Universidade de Lisboa Curso de Cinema, Escola Superior de Teatro e Cinema. Docente na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.